terça-feira, 27 de julho de 2010

Eles eram muitos cavalos (Luiz Ruffato)

Ratos

Um rato, de pé sobre as patinhas traseiras, rilha uma casquinha de pão, observando os companheiros que se espalham nervosos por sobre a imundície, como personagens de um videogame. Outro, mais ousado, experimenta mastigar um pedaço de pano emplastrado de cocô mole, ainda fresco, e, desazado, arranha algo macio e quente, que imediatamente se mexe, assustando-o. No após, refeito, aferra os dentinhos na carne tenra, guincha. Excitado, o bando achega-se, em convulsões.

O corpinho débil, mumificado em trapos fétidos, denuncia o incômodo, o músculo da perna se contrai, o pulmão arma-se para o berreiro, expele um choramingo entretanto, um balbucio de lábios magoados, um breve espasmo. A claridade envergonhada da manhã penetra desajeitada pelo teto de folhas de zinco esburacadas, pelos rombos nas paredes de placas de outdoors. Mas, é noturno ainda o barraco.

A chupeta suja, de bico rasgado, que o bebê mordiscava, escapuliu rolando por sob a irmãzinha de três anos, que, a seu lado, suga o polegar com a insaciedade de quando mamava nos seios da mãe. O peitinho chiou o sono inteiro e ela tossiu e chorou, porque o cobertor fino, muxibento, que ganharam dos crentes, o irmãozinho de seis anos enrolou-se nele.

O colchão-de-mola-de-casal onde se aninham sobreveio numa tarde úmida, manchas escuras desenhando o pano rasgado, locas vomitando pó, aboletado no teto de uma kombi de carreto, vencendo toda a Estrada de Itapecerica, em-desde a Vila Andrade até o Jardim Irene, quando viviam com o Birôla, homem bom, ele. Uma vez levou a meninada no circo, palhaços, cachorro ensinado roupinha-de-balé, macaco de velocípede, domador chicoteando leão desdentado em-dentro da jaula, cavalos destros, trapezista, equilibrista, pipoca, engolidor de espadas, maçã-do-amor, moças de maiô, algodão-doce, serrador de gente, pirulito, sorvete-de-palito. Aí começou a abusar da mais velha, agora de-maior, mas na época treze anos. Enfezada, despejou álcool nas partes, riscou cabeça-de-fósforo, o fogo ardeu a vizinhança, salvou os filhos, mas o tal, aquele, em sonhos de crack torrou, carvão indigente.

Dele herdou o menino, oito anos, seu escarro, hominho. Ano passado, ou em-antes, ignora, estourou a coceira, as costas, a barriga, as pernas, uma ferida só, coitado. Internado, as enfermeiras nem um pio ouviram, reclamaçãozinha alguma, uma graça. Levou bronca do doutor, Absurdo, falou, Irresponsável, berrou, disse para a mulher assistente-social acompanhar, Sarna, ela nem as caras deu.

Pensam, é fácil, mas forças não tem mais, embora seus trinta e cinco anos, boca desbanguelada, os ossos estufados os olhos, a pele ruça, arquipélago de pequenas úlceras, a cabeça zoeirenta. E lêndeas explodem nos pixains encipoados das crianças e ratazanas procriam no estômago do barraco e percevejos e pulgas entrelaçam-se aos fiapos dos cobertores e baratas guerreiam nas gretas. Já pediu-implorou para a de treze ajudar, mas, rueira, some, dias e noites. Viu ela certa vez carro em carro filando trocado num farol da Avenida Francisco Morato. Quando o frio aperta, aparece.

A de onze, ajuizada, cria os menorzinhos: carrega eles para comer na sopa-dos-pobres, leva eles para tomar banho na igreja dos crentes, troca a roupa deles, toma conta direitinho, a danisca. E faz eles dormirem, contando invencionices, coisas havidas e acontecidas, situações entrefaladas no aqui e ali. Faz gosto: no breu, a vozinha dela, encarrapichada no ursinho-de-pelúcia que naufragava na enxurrada, encaverna-se sonâmbula ouvidos adentro, inoculando sonhos até mesmo na mãe, que geme baixinho num canto, o branco-dos-olhos arreganhado sob o vaivém de um corpo magro e tatuado, mais um nunca antes visto.

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